sábado, 19 de maio de 2018

Mana

Irmã é isso:
Estar perto, no coração, mesmo quando estamos longe fisicamente.

Um amor sem medida, com uma história que vem desde antes.
Minha mana eu quis cuidar.
Quis desde criança estar perto e ver crescer.
E a responsabilidade por ser mais velha às vezes me pesou porque eu achava que tinha que ser mesmo um bom exemplo.
Tentei. Às vezes consegui e noutras não.
O fato é que sempre minha mana esteve em meus pensamentos.
Vivemos bons e maus momentos. Brigamos bastante e nos entendemos também.
É uma amiga para quem mostro meu melhor e meu pior.
Um misto de orgulho e alegria por tê-la em minha vida, presença constante.
Não imagino meus dias sem ela, seja num churrasco ou numa conversa rápida ao telefone.
Acredito (e talvez ela não) que nós combinamos de vir juntas nessa existência, para aprendermos mais sobre esse amor fraterno e gratuito, sobre sermos porto seguro uma para a outra.
E desejo para a outra metade de nossas vidas, que envelheçamos lado a lado, debatendo política, falando de cachorros e curtindo a família...
Que sejamos melhores, no que temos em comum e também naquilo que nos diferencia.
Eu te desejo mana toda a alegria que só um grande amor pode desejar.
Porque o que sinto por você é imensurável.
Não está no sangue, nas afinidades e nem em nada que por aqui se revela.
Meu amor por você está para além do entendimento.
Um grande beijo!


Daniela Bonafé

sábado, 10 de março de 2018

Lá vai ela

Lá vai ela, mais uma vez:
A esperança empunhada na mão,
A coragem ardendo no peito e
O grito descola da boca
Enquanto os pés seguem em justo caminhar.
A militância está para ela
Como o sol, a lua e o ar:
Imprescindível.
É o seu jeito de sobreviver
A aridez das relações contemporâneas.

Não se trata de fugir da realidade
Que oprime e desarruma o coração,
Para um aqui e agora utópico.
É estar presente na ação, na mão dada,
No pensar constante e para todos.

Lá vai ela, mais uma vez:
Desenterrar a empatia do povo,
Escarafunchar as consciências e
A indignação lhe esbugalha os olhos
Enquanto suas pernas arrastam os outros.
A militância está para ela
Como os filhos e o amor:
Sempre.
É o seu jeito de acreditar
Nesse mundo torto e acinzentado.

Há para ela um de tudo de coisas
Pelas quais vale a pena lutar e viver.
Não sabe ser se não for assim
E já que não cabe em lugar nenhum,
A militância lhe traz algum conforto.

Prefere a loucura à alienação.
Prefere o todo à parte.
Prefere a rua à televisão.
Prefere o direito à preferir.

E lá vai ela.


Daniela Bonafé

domingo, 10 de maio de 2015

Filhos

Cada manhã me refaço para abraçar.
Acordo nova para emanar amor.
É preciso a determinação de um cachorro roendo seu osso.
Procuro cores bonitas para tingir o céu.
Separo porções de cuidados e de delicadezas
- talvez em erradas proporções.
Me visto de sol para iluminar o dia.
Aqueço as mãos para o trabalho e para o carinho.
Um gole de coragem e outro de fé.
Na bagagem, no peito, sonhos que não são só meus.
E saio para a vida, certa de que sou imprescindível
- mesmo que não.
Meus filhos me fizeram assim.

Maternar

Vou sendo mãe aos poucos.
Porque é árduo, como uma guerra santa.
Tudo é novo todo o dia.
Há medo, choro, angústia.
Umas bombas explodem no coração.
Há vezes de destroços.

Vou sendo mãe aos poucos.
Porque é gostoso, como um namoro recente.
Tudo é novo todo o dia.
Há calor, riso, felicidade.
Umas flores crescem no coração.
Há vezes de plenitude.

Autorretrato II

Só sou eu
Quando estou em muitos.
Pedaços de mim
Em corações que vagueiam.
Me compreendem mal
Por não saberem
Que meu amor espalhado
É o melhor que trago.
Leviana, displicente, desapegada...
Vim sem lugar,
Meu espaço é no outro.
Fora dele sou morta,
Zumbi que perambula.
E se tentam me juntar,
Conter-me em minhas linhas,
Me perco de mim
E choro no vazio solitário
De um espelho sem reflexo.

Crônica de Uma Professora Perseverante

Alguns corriam pela sala. Outros zombavam dos colegas. Um se arrastava no chão. Outro, inquieto, o tempo todo de pé. Três pediam para ir ao banheiro ao mesmo tempo. No auge de seus 7 anos, as crianças não conversavam: elas gritavam, aos berros umas com as outras. Durante uns 20 minutos tentei todas as estratégias para iniciar mais uma aula. Fui branda, fui enérgica, esperei silêncio, voltei a porta e entrei de novo. Sorri, chamei a atenção, fui amorosa, falei bem baixinho, estava para gritar quando decidi que era melhor ir embora e deixar a sala, talvez com alguém mais competente do que eu para o dia de hoje. Mas não fui. Fui convencida a ficar e tentar mais um pouco. E algumas coisas ficaram em meu coração, doídas:


"a gente grita porque todo mundo grita."

"mas eu não estou gritando com vocês, eu não gosto de gritar."

"a gente sabe que você não grita mas a gente acostumou."

"mas vocês são inteligentes, entendem o que a prô está dizendo, não precisam gritar uns com os outros."

"eu não sou inteligente."

"claro que é, todos somos."

"não, eu não sou, sou burro."

"e eu sou só um pouco inteligente."


Estamos todos, alunos e professores, despedaçados. Uma criança acaba de entrar na escola e não confia mais nela mesma. Eu ainda não sei, depois de 10 anos lecionando, que caminho seguir com algumas crianças. Todos estão gritando e pedindo socorro.
Uma certeza em mim ficou hoje: seguir o coração e ouvir com atenção ainda é o que nos salva da loucura.

Professora

Sou professora. Sim. Com orgulho.
Professo Arte, professo amor, professo respeito, professo cultura, professo o bem e o saber pouco que tenho.
Sou professora sempre, na rua, na escola, em casa.
Não é uma veste. Não é um personagem. Não é um estado.
É profissão. É um jeito de ver o mundo. É um jeito de viver a vida.
E se eu vejo o meu par, na luta, no riso, no cansaço, chorando, gritando, sangrando... Me reconheço nele. Sou como ele. Estou no mesmo lugar, sinto a mesma coisa.
Eu estou hoje sentindo muito medo, muita tristeza, muita dor, pelo tratamento que recebemos.
Eu sinto um grande vazio que nem meus alunos de hoje, com sua enorme generosidade, preencheram.
Sou uma professora em migalhas. Que recebe migalhas. Que está esmigalhada.


- sobre a violência contra os professores no Paraná.

Meditação

Mantenho-me em pé:
Estátua de flores remendadas.
Carrego comigo um botão...
É cravo? É rosa?
É amor sem fim,
Emprestado no ventre,
Costurado nas entranhas
Com fios de sonhos e medos
E bocados de fé.
Floresce o que jazia quieto,
Desejo de recomeçar,
Voltar a ser abrigo morno
- mesmo que o tempo,
em seus contornos,
seja-nos breve, brisa que passa.

Sobre a Reencarnação

Conversa no carro:


- mãe, porque Deus vive pegando as pessoas para morrerem?

- ele não pega as pessoas filha, é que tudo nessa terra tem um tempo; as plantas, os bichos... Tudo nasce, vive, morre...

- minha vida não tem tempo, ela é sem fim porque depois que eu morrer eu vou nascer de novo em outra vida... Isso muitas vezes.

- que bonito Isa!

- e eu sempre peço muito prá você ser minha mãe de novo na outra vida... Mas todo mundo tinha que pedir, a vovó, o papai, porque senão Deus vai trocar tudo!

Sobre a Poluição

Estamos na Marginal.
Isadora vai olhando para as nuvens e encontra os formatos da irmã e da cachorra que estão por lá.
Está contente.
Então diz:

- difícil mesmo é encontrar Deus porque ele é muito grande, não cabe nas nuvens. Deus é tudo isso né mãe, menos o esgoto (se referindo ao rio Tietê).

Sobre a Páscoa

Aproveitemos o tempo de páscoa com as crianças para uma renovação no lar. Hora de limpar, rever, organizar, transformar espaços para receber o novo. E que o outono nos traga a ideia de deixar o que é velho e seco cair... Para que após o inverno de descanso e acomodação emocional, possamos florir na primavera!!!

Sobre a Falta de Argumentos

Eu sou uma mulher branca, descendente de italianos e espanhóis. 
Nasci numa família com pai e mãe, ambos com empregos. 
Sempre tivemos casa própria na cidade de São Paulo. 
Tive uma infância feliz. 
Não lembro de ter tomado um tapa. 
Meus pais têm nível superior e até hoje me apoiam em tudo. 
Estudei em escolas particulares e pude fazer cursos extra-classe como violão. 
Nunca passei fome, frio ou qualquer outra necessidade básica. 
Comi coisas gostosas como danoninho e trakinas. 
Pude escolher a faculdade que quis fazer. 
Pude escolher trabalhar. 
Tive acesso a livros, a Arte, a cultura em geral. 
Sempre fui ao pediatra, ao dentista, ao oftalmologista... 
Fiz uma pós-graduação. 
Tive filhos com toda a estrutura necessária. 
Moro bem, vivo bem, sou realizada.


Diante dessa minha vida confortável, elitizada, burguesa, era de se esperar que eu fosse mais uma pessoa envolvida no capitalismo perverso sem questionar nada, que eu aceitasse a manipulação da mídia e ficasse sentada em meu sofá vendo a globo passar.


Mas no primeiro ano de faculdade eu li uma coisa que mudou tudo em mim. Claro que não mudou a minha história vivida, mas como eu podia enxergar diferente a minha história. Eu li Paulo Freire.
E li sobre exploração, sobre direitos, sobre autonomia... E então eu li sobre tudo o que me causava espanto. E comecei a ver que para cada comida que entrava na minha geladeira, alguém não tinha o que comer. Que para cada dinheiro gasto conseguido com trabalho, outros tantos estavam no farol e sem trabalho... E então li sobre negros e índios e nordestinos. E li sobre a miséria, sobre a fome, sobre o Estado. Li muito sobre a Educação e sobre interesses a respeito dela. E comecei a olhar as pessoas nas ruas bem no fundo dos olhos.


Decidi ser professora.
Professora da rede pública de ensino na periferia. E de Arte.
É o mínimo que posso fazer para devolver à sociedade tudo o que ela me proporcionou com a exploração que sofreu e pela qual fui conivente mesmo sem saber. Exploração que me proporcionou a vida que tenho hoje. E professora da rede pública porque acredito que meu trabalho é bom e ele deve ser para todos. E de Arte porque é preciso mesmo de muita sensibilidade para combater discursos de ódio como os de hoje.


Portanto, me deixou deveras estupefata o cartaz com a frase "Basta de Paulo Freire". A pessoa que escreveu esse cartaz não deve ter lido nada sobre ele ou nada de sua obra. E se por acaso leu, é muito pior. Pois revela que tal pessoa não consegue perceber como sua vida está intrinsecamente ligada às vidas de outras pessoas, não percebe seu papel transformador na sociedade.
Tal cartaz só reforça em mim a vontade que tenho de ensinar. De dizer para os jovens e crianças de seus deveres e direitos, de como é importante ser sensível ao outro. E de que cada um está ligado ao outro, num grau de extrema responsabilidade.

Carta a Uma Amiga


Queridas férias, eu te amei muito, em todos os dias que você esteve presente! 
Pena você ir embora tão rápido. 
Ficarei com muita saudade, esperando você voltar o quanto antes. 
Sinto que não beijei você e nem abracei o quanto podia; que poderia ter te agarrado para que não fosse embora assim… 
Mas eu tinha tantas outras coisas e pessoas importantes para cuidar... e agora, que vejo você se despedindo de mim, percebo que não te dei atenção suficiente. 
Amanhã eu pensarei em você todo o tempo e aguardarei o seu retorno, para eu te amar mais uma vez!!!

Prece - 1º Ano

Santa Mãe de Deus,
vem e cobre o céu de estrelas, 
para me fazer dormir feliz 
e te agradecer cada vez mais.

Mãe, cuida dos teus filhos e dos meus, 
com todo o teu amor e devoção 
e dizei ao meu coração 
que é hora de ficar em paz.

Isadora Menina

- Isa, hora de dormir, vamos lá, vamos nanar.

- Nanar é de bebê mãe. Eu vou fazer 5 anos, você tem que falar só assim: hora de dormir filha!

- Vô, quando o bebê nasce, ele não come não, você está errado. Ele mama no peito. Eu sei tudo disso porque eu leio a enciclopédia!

Perguntas sem Respostas


Isadora:


- Mas mãe, eu achava que a Heloísa dormia na nuvem com os anjinhos. Mas agora eu sei que a chuva é a nuvem caindo. Então onde é que ela dorme?

- Mãe, São Pedro podia lavar o céu de esguicho e daí a Heloísa ajudava com o baldinho dela porque tá muito calor, né?

- Mãe, como é que a alma do bebê, que está no céu com os anjinhos, entra no bebê que está na barriga, hein?

- Mãe, como é que a semente do papai junta com a semente da mamãe? Como a semente do Zeca e da Nina podem se encontrar?

- Mãe, eu sei que a alma da Heloísa vai entrar em outro bebê um dia e ela vai começar tudo de novo, outra vida, sabia?

Presente de Aniversário


Isadora:

- Mãe, eu queria te dar um microfone de presente. Daí você saía na rua, vestida de noiva, cantando no microfone assim: Prepara, que agora é hora do show das poderosas… E com um montão de crianças atrás de você, seguindo você na rua… Porque eu sei que você gosta de cantar.

- Mãe, seu aniversário é depois do meu?

- É filha, na outra semana, por que?

- Porque eu vou te dar um presente.

- Ah é? Mas não precisa me dar nada filha…

- Precisa sim, vou te dar um presente bem especial.

- Tá bom então, obrigada, eu vou gostar.

- Eu vou te falar.

- Mas daí vai acabar a surpresa Isadora!

- Eu vou te dar um neném.

- Ah filha, não dá… só o papai do céu pode dar um neném prá mamãe.

- Dá sim. No dia do aniversário seu, eu vou pedir prá ele um neném, vou pedir com bastante pedido porque ele sempre ouve as crianças.

Sobre a Transitoriedade

Isadora e suas constatações:


"Mãe, sabia que o mundo gira igual uma hélice?
É filha?
É. Gira e gira.
Quem te disse isso?
Ué, eu mesma!
E por que você acha isso?
Porque tudo muda mãe, todas as coisas…"

Amor em mim

Tanto amor em mim,

Transborda todo o tempo,

No canto do olho e no toque da mão.

Tanto amor juntado,

Guardado num sem fim de mim.

Um tantão assim de amor,

Maior que eu todinha e que toda a distância.

Amor prá toda vida e prá tantas outras.

De Novo Saudade

Dias são como mar.

Leva. Traz. Leva. Traz…

O dia me trouxe saudade.

Carta ao Daniel

Mesmo que não acredite
Ou que tenha se acostumado
Mesmo que saiba de cor
E bata a certeza em tua porta
Mesmo depois desse tempo
E de tanto sonho, idas e vindas
E de tanto riso, choro e gozo
Manhãs, noites inteiras
Grudados, sozinhos, perdidos
Confusos, doendo, apaixonados
Felizes, gritando, vencidos
Sussurros, beijos, cansados
Mesmo quando foi embora
E quando esteve ou ficou:
Te amei, te amei, te amei
Te amo, te amo, te amo.

Sobre o Medo


Isadora e suas meditações...

- mãe, não é bom ter medo porque quando tem medo, o medo cuida da gente e daí a gente fica com aquele olhar porque o medo é vermelho.

Sobre Deus

Isadora em nova maratona de perguntas antes de dormir:

- Mãe porque existem pessoas?

- Prá quê Deus criou a gente?

- Quem criou a tataratataratataravó? Foi Deus?

- E como é que então virou esse montão de gente no mundo?

Depois do meu blablablá sobre as diversas crenças religiosas a respeito da criação e sobre a versão científica (de maneira apropriada à crianças, se é que existe isso), expliquei o que eu acredito e disse que ela poderia escolher no que desejava acreditar. E que poderia também não acreditar em nada disso ou deixar isso prá quando fosse maior. E também falei sobre ser feliz.
Então ela me respondeu:

- Acho que eu vou ficar assim desse meu jeito mesmo porque eu sou feliz!

Homenagem a Reginaldo Poeta

Aquela poesia
Que chegava de mansinho
De carona num barquinho
Puxado pelo poeta
Ainda é viva, latejante,
N'alma dele, viajante,
E em nosso coração.
Como não sabemos poetar
Rezamos silêncios e oração
- é nosso jeito de gratidão -
Por aquele que foi, é e será
A asa da borboleta,
O cheiro bom de fruta madura
Som de rabeca no vale
Anil do céu em dia de verão
A alma da flor
As cores da Terra.

Sobre o Amor Fraterno


Um recorte de hoje:

- Mãe, a Heloísa cresce no céu?
- Não sei filha. Eu acredito que o corpo dela está na terra e que a alma dela está no céu. Eu acho que a alma dela continua evoluindo, crescendo em sabedoria. O que você acredita?
- Eu não acho isso. Eu acho que ela é como aquela nuvem ali. Ela fica no céu, voando toda hora e eu acho que ela não cresce. Eu acho que ela brinca com a nuvem. Eu vejo ela daqui.
- Tá bom. É um jeito bom de acreditar.
- Eu sei mãe. Meu jeito é bem melhor porque dá menos saudade.

Sobre a Paciência


Eu sou uma dessas pessoas feitas para o aprendizado da paciência.
A paciência da plenitude de aguardar o nascimento de um filho. 

A paciência que se tem para amá-lo quando está doente, quando tem medo, quando quer ficar acordado a noite, em todos os dias de sua vida. 
Ou a paciência desesperada de acompanhar o desencarne de seu outro rebento. 
A paciência que se tem de ter consigo, todas as manhãs, para reunir coragem. 
A paciência esperançosa de se casar duas vezes com a mesma pessoa. 
A paciência ansiosa de ensinar e aprender como professora. 
A paciência criativa de pintar mandalas e seus pequenos detalhes, ou a paciência insossa de querer escrever um poema e ele não vir. 
A paciência diária com o trânsito, com o trabalho, com a louça que teima em se acumular, com as pessoas que maldizem o mundo. 

E se eu pudesse relembrar todas as minhas tarefas e desafios até aqui, estaria lá o bendito exercício da paciência.


Então não é novidade que nesta nova fase da minha vida, mais uma vez a paciência (que se esgotou para muitos) é minha companheira. Talvez ela seja o caminho mais aprazível para mim. Só com a paciência sou capaz de suportar ausências, já que minha vida é cheia delas.

Eis meu mais recente percurso: uma vida toda sem corantes, conservantes, aromatizantes, flavorizantes e saborizantes.

Eles estão em toda parte: nos remédios, esmaltes, quase todas as comidas, massinhas, tinta para cabelo, canetinhas de pintar… O mundo é colorido, saboroso, conservado!!! Mas não podem mais estar em mim, porque sou alérgica a eles. Uma alergia dessas bem graves, que quase me tira daqui e me manda pro lado de lá. Então, seja bem vinda de novo, minha amiga paciência.

Porque só com você fica mais fácil!

Filha

Cada sorriso da minha filha confirma em meu coração a imortalidade de nossas almas.

Pensamento

Quando eu tinha uns quinze anos, não passava pela minha imaginação, nem de longe, que minha vida seria assim. Que eu viveria essas coisas todas. Que eu sentiria tudo isso. Que eu escolheria tais caminhos. E agora fico feliz por ser ignorante de mim e da minha futura história, aos quinze anos. Sinto-me imensamente aliviada. Ainda bem. Eu teria muito medo se soubesse da minha jornada vindoura. Teria raiva. Teria um acesso de loucura. Talvez eu risse sem parar. E depois me afundasse na cama. E depois acho que eu fugiria. Ou será que eu ficaria pasmada? Nem sei. Só sei que pensei nisso hoje e refleti o quanto somos felizes por a vida ser essa surpresa diária!

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Sobre a Juventude

Nos últimos dias, meu coração ficou apertado enquanto eu observava meus meninos e meninas - como carinhosamente chamo meus jovens alunos - participarem do campeonato interclasses da escola.
Senti-me um tanto deserta de vida, da vida latente que brilha nos olhos de cada um deles e que eu, ao longo dos anos da madureza, deixei ir embora.
Ah, como são bonitos!
Olho para eles com curiosidade até, porque mal lembro de mim em época parecida, e da beleza que eu carregava e nem sabia.
Isso porque na juventude costumamos achar nosso corpo feio e nossa cara esquisita! Que tolice! Talvez tenha sido o tempo em que o conjunto da minha obra esteve mais equilibrado. Tempo de cabelos vívidos, olhar profundo e curvas harmoniosamente pioneiras. Os músculos ainda tenazes e sem a flacidez de carregar filhos ou as indesejáveis inconveniências de fast food acumulado… Os desejos à flor da pele, como bolhas de sabão prestes a explodir… E uma alegria!
Aquela alegria de despertar para o mundo, de desafiá-lo sem pudor; alegria de amar demoradamente um amigo e rapidamente um fazer qualquer.
Senti-me assim, bem sozinha, ao vê-los ali, me rodeando dessa força alaranjada que eles têm. E depois... Depois eu fiquei com uma baita saudade.
Saudade deles, que vão caminhar sem minhas mãos, ainda que estejam perto - nas visitas regadas novidades a abraços apertados.
Saudade de mim, da parte que fui e que às vezes tento encontrar: aquela eu que aparece quando escorrego num toboágua, quando beijo meu amor ou quando brado e levanto minha bandeira na rua.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Verdade Inconveniente

Não, eu não mudei.
Passou um tempo,
Eu sei,
Mas sou a mesma.
O mesmo andar,
Os velhos toques.
Eu não mudei.
Foram teus olhos,
Teus olhos cansados
Que me viram,
Viram melhor.
Mas não,
Não querido:
O que eu guardo,
O que eu digo,
Está tudo igual
Como era antes
Porque eu não mudei.
E nem queria.
Nem queria mesmo.
Eu gosto assim,
Assim como sempre.
Não,
Não diga isso,
Não fale mais
Que eu mudei.
Eu não mudei.
A mesma dor,
Os velhos risos,
Sou eu aqui de novo.
Olha de novo,
De olhos abertos,
Eu não mudei.
A mesma, igual.
Não, não fale mais.
E nem de novo.
Não estou morta.
.
.
.
.
Eu estou morta?
Morta?
Porque não mudei?
Não diga isso.
Não fale mais.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Solilóquios

I

Que falta me faz
- pedaço de mim.
Doído é assim
E aguado demais
Meu pranto sem fim.
Mãe de querubim
É anjo sem paz.

II

Carne da carne
Sonho do sonho
Sem você
Às vezes é cinza
E tudo dói

III

Respiro.
E mais uma vez.
Sinto o quente
Que escorre
Do canto do olho:
Salgado,
Toca meu lábio.
É para lembrar-me
Que estou viva,
Ainda que não.
E eu não sei mais
Dizer o teu nome
Sem morrer um pouco,
Sem rezar um tanto,
Sem sorrir durante
E sem chorar depois.

IV

Lua.
Sol.
Lua.
Sol.
A saudade só aumenta.
É um não sei o quê
Que me leva e me puxa
E me abre os olhos
E sopra em meus ouvidos:
- Segue!

sábado, 26 de outubro de 2013

Sobre a Sabedoria

Isadora, minha filha de 4 anos, segura sua boneca Laís no colo, a quem chama de filha nessa última semana. E assim começa:

- Filha, você sabe sobre as vidas? Não? Eu vou te explicar sobre isso. Primeiro a gente é bebê, depois criança, depois adolescente, daí é jovem, depois é adulto e depois velhinho. Daí depois a gente morre e vai pro céu. Daí lá a gente tem outra mãe e fica um pouco e depois a gente volta e começa tudo de novo, primeiro bebê, depois criança, depois adolescente, tudo de novo, entendeu? Mas você é boneca e então não é assim. A boneca tem vidas, porque agora eu sou sua mãe, mas quando eu crescer e for adulta, daí você vai ter outra mãe porque uma criancinha que não vai ter brinquedo vai ter você porque eu vou fazer doação de você. Então você também vai ter vidas, entendeu?

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Mistério do Trono de Oxum

Amar sem reservas e condições, com toda a verdade e pureza,  com a alma e a grandeza que o outro merece apenas por ser.
Tudo o que é, precisa ser amado, na totalidade de seu bem e adversidades.
Porque só o amor gera, cria, alimenta, cuida, ensina, reina e leva.

Menina Oxum

Preta d'água de cachoeira
Menina travessa e faceira
Adornada de contas azuis

Vestida de ouro do firmamento
No colo embala um rebento
Do teu amor feito de luz

Alimenta de leite e mel
- delícias que vêm do céu -
Seus filhos de coração

E apresenta-lhes toda a beleza
Do poder de tua natureza
Que gera vida como uma oração

Desespero

Sozinha, num banheiro trancado, sentada na louça sanitária, as pernas encolhidas e o rosto afundado entre as mãos. Chorava querendo colo, um carinho que não vinha, pedia socorro sem que ninguém soubesse. E murmurava orações enquanto pressionava as mãos contra o peito, súplicas de compaixão porque sabia que se o céu desabasse seria melhor. Toda aquela aguaceira da lágrimas ajuntadas se rebelaram num de repente e o dilúvio tomou conta dos cabelos, das horas e os gritos sufocados viraram um nó que não desatava. O seu mundo tremia e o tempo parou. 

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Sobre a Cumplicidade

- Mamãe, você é a melhor mãe que eu tenho!
- Que bom filha! E você é a melhor filha que eu tenho nesse mundo!
- E a Heloísa?
- É a minha melhor filha do mundo de lá.
- Por que ela morreu mãe?
- Por que ela não conseguiu respirar bem filha… e Deus precisou dela.
- Para que?
- Para ajudar ele nas tarefas do céu, ora!
- Mas daí você ficou sem filha e ficou triste.
- É, a mamãe ficou bem triste mas está tudo bem.
- E eu fiquei sem irmã e fiquei triste.
- Eu sei, mas ela está no nosso coração.
- Sabia que ela está ouvindo tudo isso mãe?
- Sabia.
- Mãe, e você já está pronta para outra?
- Acho que sim e você?
- Eu também estou!

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Vaidade

O dia nublado não era indício de coisas grandiosas na sua rotina.
Caminhava demoradamente na larga passarela ladrilhada que atravessava a avenida.
A moça, bem comportada em seu conjunto marinho e saltos agulha, braços estendidos ao longo do corpo, levava na mão direita, guardada na palma fechada, uma moeda brilhante.
Ao primeiro pedinte, sentado junto à sarjeta, por qual passou sem nem baixar os olhos, doou a moeda jogando-a no colo encardido dele.
E numa fração de segundo ela olhou para trás, procurando a cumplicidade de um estranho que tivesse acompanhado a cena e que pudesse julgá-la, como tanto desejava no fundo da alma.
Sim, que esse desconhecido a tomasse por uma boa mulher, dotada de compaixão ímpar e que a invejasse em sua bondade e carisma.
O cinza do céu tinha-lhe enganado: pois encontrou um rosto que a mirava e que seguia seu andar com os olhos. Um alguém a quem podia mostrar-se, ainda que mentirosa.
E então ela sentiu correr por todas as suas veias um calor. O único calor que a aquecia.
A moça enrubesceu e sorriu porque sua velha companheira vaidade, a quem amava como uma cadela, estava ali de novo, para dar-lhe segurança.

sábado, 12 de outubro de 2013

Inveja

As roupas.
Os truques.
As frases.
Os amigos.
As viagens.
Os sonhos.
As manias.
Os desejos.
E até os medos.
Tudo, tudo,
Tudinho dos outros:
Queria, queria,
Queria um tanto imenso.
Então imitava, imitava,
Seria igual?
Ah, era tão infeliz,
Consumida em seu mal!

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Cantiga para Mainha

Manha, manha
Mainha Oxum
Teu colo é doce
De alcaçuz
Guarda minh'alma
Ainda criança
Sob o amor
Da tua luz
Sol das nações
Brilho dos rios
Dourada feito
A cor do mel
Senhora nossa
E rainha
Mainha Oxum
Minha e do céu

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Sobre a Propaganda Enganosa

Mais uma pérola na volta de carro para casa:

No semáforo vermelho, minha filha Isadora conversa com sua boneca Beatriz, a quem considera filha e com quem dorme muitas noites. Isadora está sentada na cadeirinha do banco traseiro e, apontando para uma loja da rede Mc Donalds, dispara:

- Assim não é possível, filha! Todo mundo dessa cidade sabe que isso é um Mc Donalds, porque olha ali, eles usam essas redinhas no cabelo. Então para que essa foto grande do hamburguer ali? É só para a gente olhar e ficar com vontade de comer e daí a mãe da gente compra e adivinha? Ele é muito salgado! E daí o filho pede (fazendo vozinha de bebê): mamãe eu quero um hamburguer com brinquedinho! (voltando a fazer a própria voz) E daí vem um brinquedinho que não é caro, é um desses que custa zero reais!

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Sobre a Despedida

Era uma vez uma florzinha, cheia de vida, guardada dentro de uma semente.
Estava acolhida, recebendo nutrientes e cuidados mas ela sabia que logo ia nascer.
Então se preparou bem.
Aproveitou tudo o que pode da terra porque sabia que nascer era coisa difícil.
Já tinham lhe contado dos ventos, intempéries e homens maus.
Chegada a hora tão esperada, brotou para fora do solo e percebeu o ar gelado que tocava suas pétalas, os sons e luzes ao redor.
Assustada, ficou quietinha e olhou em volta.
Foi quando se deu conta de que ser flor era pouco para toda a sua graça.
Era manhã.
Despetalou-se toda a frente de olhares tão tristonhos e foi murchando, até voltar para a terra, ao fim do dia.
O jardineiro aguardava ansioso por aquele dia afinal, tinha cuidado da florzinha com todo o seu coração.
Quando viu a pequena morrendo, correu para dar-lhe água mas de nada adiantou.
Ainda tentou tocá-la, mas era tarde.
Apenas acompanhou, solitário, aquela beleza efêmera e depois, teve que partir para cuidar das outras importantes plantas do seu jardim.
Mesmo triste, sabia que outras flores dependiam de suas habilidades.
A florzinha, em pedacinhos dispersos na terra, demorou uns dias para se recompor; pensou bastante e decidiu onde queria morar.
Mas antes de embarcar nessa nova aventura, a bondosa flor decidiu despedir-se de seu amável cuidador.
No instante que uma brisa delicada passava por ali, deixou que algumas de suas pétalas tomassem carona e voassem até a janela do quarto de dormir daquele bom moço.
Ele estava acordando de um sonho gostoso, em que trabalhava bastante aguando seu jardim…
Ainda com sono, pode reencontrar as pétalas da florzinha, apoiadas no parapeito.
Então ele soube que sua pequena estava bem e muito feliz com os planos da nova viagem que iria fazer e onde queria morar.
Nesse dia, o jardineiro teve certeza que queria ser jardineiro para sempre.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Sobre a Solidão

Eu era criança ainda quando descobri esse buraco sem fundo chamado solidão, que me acompanha diariamente no meu para sempre. Tinha medo de sua feiúra e escuridão, das coisas estranhas que me dizia antes de dormir... Mas minha inquietação durou pouco: peguei na mão de minha mãe e segui com ele, o vazio de todos, me acostumando à sua constante presença.
Devagar, percebi que a solidão podia ser uma boa companhia, já que me proporcionava momentos de profunda inspiração, além de me confessar verdades que ninguém jamais teria coragem de me contar. E quanto mais gente eu conhecia e amava, mais esse buraco aumentava, crescia para os lados e para cima, tomando conta de tudo.
Já na juventude, eu quis amar mais e conhecer tantas outras pessoas, na intenção vã de preenchê-lo.
Ah, então veio aquele mar de dor: vi com olhos esbugalhados como eu era só e que não havia remédio para curar o que é sina de toda a gente. Chorei pelos cantos, incompreendida, sem compreender nada.
E de aguar-me sem nenhuma compostura, aprendi que a solidão poderia ser minha salvação, buraco guardador de segredos e apanhador de sonhos.
Agora, já mais velha mas nem tanto assim, percebo minha solidão (que em verdade, é nossa) com olhos mais serenos. Encanta-me saber que esse buraco é só meu, um fundo particular, com quem compartilho ideias luminosas, pequenos prazeres e incontáveis lágrimas; meu fiel amigo a quem revelei meu melhor e meu pior.
Peguei na mão da solidão e sigo com ela.

Sobre o Crescer

Eu e minha filha conversando no carro ontem, na volta para casa:

- Mãe, o maternal está cheio de bebezucos! Hoje uma bebezuca foi lá fora com a gente! Sabe aquela bicicletinha bobinha, de madeira, então, eu gostava dela.

- Nossa Isadora, você lembra do maternal? Que legal! Que brinquedo mais gostava?

- Primeiro do cavalinho e segundo da bicicletinha.

- E agora no Jardim, o que mais gosta filha?

(pensativa) - Hummm, nenhum brinquedo.

- Como assim, nenhum brinquedo? Não tem nada de que você goste?

(pensativa) - Ah, já sei mãe, o brinquedo que mais gosto sou eu mesma, porque eu que fico inventando as brincadeiras...

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Sobre a Alma

Estão lá, gravadas na alma, todas as experiências, sensações, imagens abstratas de cada contato travado com o outro. Fico pensando que mar sem fim é esse de mim e que cabe nesse meu corpo de cinquenta e cinco quilos.
Ela pulsa e vibra e rodopia quando durmo, viajando entre os astros, ansiosa para desprender-se de mim mais uma vez na próxima noite. Percebo que é por isso que, vez ou outra, acordo cansada, como se tivesse passado a noite numa festa. Ou então, abro os olhos e ainda vejo estrelas...
Ela carrega meus hábitos, vícios, mazelas e maldades. Eu devo consertá-la, com frequência, para que não fique inutilizável. É preciso curativos, bandagens... As crianças costumam ter os mais eficazes unguentos para a alma: trazem carinho nas mãos, verdades na boca e anjos no olhar. Como num passe de mágica, são capazes de revitalizar nosso dentro sem deixar rastros.
Mas é também ela que sustenta minha moral, minha ética, minha espiritualidade e todas as outras virtudes que venho cultivando, cautelosamente, há milênios.
Ainda bem que eu não a vejo. Acredito que se ela tivesse uma forma, seria disforme, uma coisa assim torta e estranha, meio feia e meio bonita, uma mistura de azedo e doce.
Acho que a alma deve ser um algo confuso. Com tanta coisa ali, boa e ruim, velha e nova, quase nem acho palavras para descrevê-la.
Umas palavras que me lembram alma e que fazem sentido, para mim, na comparação do que eu imagino que ela seja, com o que conheço de concreto são "samba", "babel", "Lua" ou expressões inexistentes como "coisa coisada".
Eu queria mesmo poder escrever sobre a alma porque é um jeito de entender melhor o que a gente não compreende. A palavra ajuda a pensar e o pensamento ajuda a construir palavras... Na verdade, era essa a intenção do texto. Mas já vi que não vai dar. A alma vai ficar para depois.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Sobre o Tempo

Sempre fui esperta. Esperta para fazer as coisas com agilidade. Mas não esperta de esperteza mesmo, dessa que a gente antecede o que se pode acontecer se...
Uma esperteza de fazer o que tem que ser feito, com eficiência e rapidez.
E de alguma maneira, essa minha qualidade, nos tempos contemporâneos da falta de tempo para tudo, tornou-se um fardo, um algo do qual virei refém.
Pode o dia ter 24, 32 ou 100 mil horas, eu ainda não darei conta de tudo o que está por fazer. E então eu aprendi a viver correndo, na tentativa de fazer tudo, porque é preciso.
Não sei bem quem me ensinou que é preciso ou se acredito nisso sem nem saber porque. A questão é que simplesmente corro demais.
A rotina começa duramente cedo, bem cedo e acaba muito tarde, bem tarde, quando já é dia seguinte. O sono é regalia, umas cinco horas devem bastar e se não bastam, eu me contento.
E foi assim nessa frenética rotina que eu me encontrei com minha filha e venho esbarrando nela, diariamente. Digo assim porque ela tem outro tempo, um tempo saudável e feliz, típico de uma criança de quatro anos.
Vamos, estamos atrasadas! E, pacientemente, ela coloca as presilhas no cabelo e escolhe a boneca que vai acompanhá-la até a escola. Anda logo filha! Mas ela ainda está vendo as figuras de um livro ou guardando, uma a uma, as pecinhas de um jogo. Depressa, não vai dar tempo! Ela beijando sua ovelhinha de pelúcia e colocando o cinto do carro na bichinha. Mas que demora! Mas ela ainda acarinha os cachorros que tanto ama e resolve dar uns biscoitos. Come logo essa comida! E a comida, está na boca, virando purê, enquanto ela ouve uma história do vovô.
Na vida da minha filha o tempo é largo, barrigudo, sobra espaço para tudo o que for bom, feliz, sensível e curioso. Ela aproveita a água do banho, o abraço do pai, a lambança das tintas no papel, o sabor de um almoço, o frescor de um suco... Há tempo para cada coisa. E dorme cedo e dorme bem e dorme muito.
Então desde que ela chegou, atravessando a minha vida devagar, eu venho me perguntando sobre essa insanidade de viver às pressas. Eu tão esperta por ser ágil, ganhei uma filha esperta por viver com prazer e verdade, no tempo que lhe convém.
Acho mesmo que ela está certa, além de esperta, é mais inteligente que eu. Porque vivendo bem, no próprio ritmo, economiza energias e poupa o corpo de estresses desnecessários. Está sempre sorrindo, com o espírito de prontidão.
Eu é que preciso me corrigir.
Tarefa difícil para quem sempre usou agenda ou marcou quinhentos compromissos num único dia. Parece impossível desacelerar.
Mas não é.
Exercitar a paciência e o controle da ansiedade com certeza me fará uma mãe melhor

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Sobre a Morte

Quando exercitamos a auto-consciência, depois de sentirmos na pele que nada é absolutamente definitivo, nem a própria vida ou a de quem amamos demais, compreendemos a inutilidade do orgulho e de disputas, a estupidez da ganância ou da arrogância... e passamos a valorizar a beleza da sensibilidade, o prazer que nos lava a alma quando perdoamos o outro e nos perdoamos, a bênção que pode ser um abraço, um beijo, um sorriso ou uma palavra doce, a alegria de acordar e ter mais uma chance de amar e ser amado, de tentar tudo de novo... A realidade da morte bate à nossa porta para nos dizer da vida.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Sobre a Caridade

Quando uma mãe perde seu filho, ela ganha o maior presente que Deus poderia dar à ela, mas que nunca teria coragem de pedir: o dom da caridade.
Servir de abrigo para uma criança, amando-a sem limites e aceitando a efemeridade de seu tempo no corpo físico, mas de ligação espiritual eterna, é praticar a mais pura caridade.E ao ser arrebatada por tal caridade, a mãe eleva-se temporariamente à condição de anjo, capaz de perceber o divino presente em tudo, em todos e nela própria.Depois disso, nunca mais será a mesma.Sua experiência de amor será tão profunda que jamais olhará as pessoas do mesmo jeito. Seus olhos estarão sempre embotados de tamanha caridade... e assim compreenderá o sentido de sua existência.

Pensamento Bom

Pensamento bom
É como luz no mundo:
Cria tudo que habita
- o céu, a terra e o entre,
anjos, homens, bichos e reinos.
Irradiação de vontade e calor,
Que emana do corpo
Pelo fio que nos liga ao divino,
Da cabeça aos mistérios.
Quando compartilhado,
Aquece outras almas
E vai se multiplicando, sem fim,
Feito chama de vela.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

O Fundo

Perplexa,
Percebia afogar-se
Na areia movediça
Da eterna perguntação.
Por que não experimentava
A leveza e plenitude
Da santa ignorância?
A toda hora e a todo custo
Vivia por respostas.
Então quase submersa,
Com a natureza em fúria
A devorar-lhe a carne crua,
Compreendeu um algo,
Que de tão grande,
Quase tirou-lhe o ar.
Era nas tripas
Que morava a vontade.
E por então isso bastava.
Tocou com a ponta dos dedos
O fundo, bem fundo...
Então o impulso
- de quem não quer morrer só -
Tomou conta de seu corpo e,
Devagar, começou a subir.
Não era preciso saber mais nada.


Princesa

Feito cachorro sem dono,
Esperava as migalhas debaixo da mesa.
Saciava o tanto de que precisava,
O pouco para que abrisse os olhos no dia seguinte.
Teimava em acreditar que era princesa,
Rainha de um banquete de gostosuras sem igual.
Carregava a vergonha amarga
De gostar menos de si do que de todo o resto.
Do que de todo mundo.

Cálculo

"Água mole em pedra dura tanto bate até que fura"
Sabedoria popular

Meu monolito particular. 
Dor condensada e só
Lateja na forma
Embrionária do rim.
Aciono o botão
"Desentupir Filtros"
Mas está quebrado
Desde a última década.
Os minerais sempre mortos
Ajuntaram-se todos
Para me assombrar
Com suas histórias
De corpos calcificados.
Um banho morno
- alívio imediato -
Bem poderia umedecer
Todo o meu dentro revirado.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Realinhamento

a Escrita
Mumifica
a Ideia
Efêmera

a Letra
Contém
um Caco
da Alma

a Palavra
Retém
o Impulso
da Vontade

o Poema
Traduz
a Arte
Anímica

a Poesia
Mantém
o Espírito
Vivo


quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Donana Zulê

A demanda
Dança candombe
Ao som da macumba

A pendenga
Passa na mandinga
Abençoada por pomba

Dona quenga
Preta do Congo
Arrasta no samba
Ao toque da catimba

No dentro da tenda
Zulê tinha ginga
E fazia dengo
Com branco de renda

Era umbanda
Mistura de bandos
E farinha na pemba
Em busca de Aruanda

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Mal Dizer

Sibila
Traiçoeira
E escondida
Num cochicho
Uma mentira
Dotada de asas
Que toca cada canto
E não volta mais.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Sanha

Era o som do sangue
Correndo, endoidecido,
Enrubescendo o rosto
Num tempo de raiva.
Rugia o fundo do olho,
Fixo, suspenso no fato
- miséria para consumir
as tripas e os ossos -
Entalado na garganta,
Um nó para ser cuspido.
As mãos, enfezadas,
Atritavam-se forte,
Escalpelam-se os dedos
- os mesmos, covardes,
que marcaram a cara
daquele amor santo.
Disso nascia o corvo
Que lhe bicaria o fígado
Num aflição eterna
E sem remédio vivo.

O que Há e o que Falta

Desejava ter garantias,
Destino certo e determinado.
Não foi assim - nem nunca é mesmo.

Feito criança mimada,
Virou de lado,
Deu com os ombros
E esperou a mansidão,
A seda, a pluma, a suavidade
Azul de um faz-de-conta infantil.

Despreparado,
Foi engolido vivo,
Preso no olho do furacão.

domingo, 25 de agosto de 2013

Meio Morta

Enfronhada no medo
Que tinha do espelho
- verdade constante -
Bebia de mentiras,
De odores fétidos
E suaves texturas;
Que apaziguavam
Toda a inquietação.
Irremediavelmente,
Digeria, satisfeita,
A inércia aprazível
De nenhuma novidade;
E consumia seu tempo
Repetindo, sem pudor,
As mesmices insanas
De uma mulher comum.
Mas até uma brisa
Que resvalasse na porta
Imponente de sua casa...
Ah, que tormento!
Atônita, tremia e gritava,
Chamava o nome de deus
E de todos mais.
Ninguém vinha!
E ela, assim só,
Escondida nas cobertas,
Olhava, perplexa,
A tal brisa passar
- mais uma vez.
Era tão feliz no cárcere
- sofá aconchegante -
Da plena acomodação.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Amor

Entre as pneumonias de tristeza
E a saudade melancólica do que findou
É que brilha, latejante, a felicidade:
Dormir na paz quente de meu travesseiro
E acordar, manhã cedinho, inda escuro,
Com tua voz berrante me chamando.
Sim, eu tenho mais um dia para te amar.


Homem

Foi na curva da estrada
Que perdi minha configuração.
Onde estava, a essa altura,
O vegetal que me habitava?
Até as pedras daquele rio
Escarneciam do meu infortúnio.
Eu ali, faltando partes,
Os sentidos me escapando...
Restou-me a chata da razão
Para dizer-me do certo,
Do mineral presente na morte
E de tantas outras bobagens
Descartáveis e acomodadas.
Eu era um homem
E mal sabia de mim.

domingo, 18 de agosto de 2013

Caminho

Momento e sentidos:
Percepção dos fatos.
Por horas a digestão.
Impressões rodopiam
E significam coisas e
De repente, são outras
E então nem são mais.
Bem tarde, já velhos,
Cansados mas vívidos:
Recordar e reconhecer
Que tantos guardados
Carregam vida própria.


sábado, 17 de agosto de 2013

Trimembração II

Pensar no que é bom.
Sentir o que é belo.
Querer o verdadeiro.

Trimembração

Corpo que percebe.
Matéria do sentir.
Casa da alma.
Efêmero.

Alma do movimento.
Vínculo do viver.
Casa do sonho.
Passageiro.

Espírito da vontade.
Impulso da ação.
Casa do ser.
Perene.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Anjo de Guarda

Anjo de guarda da minha vasta alma,
Pássaro do céu azul e do bom querer,
Teu suave regaço de flores de palma,
Protege meu coração e o faz florescer.

Repouso em certeza de paz infinita,
Por quanto durar o que há de tempo...
Mesmo que a vida queira por-me aflita,
Recordo o amor que me trouxe no vento.

Adormeço na quietude de tua casa,
Sozinha no morno branco de tua asa,
Útero que acolhe as migalhas de mim.

Hálito do bem que meu sono embala,
Um sopro divino a tua boca exala,
Para acender luz nessa noite sem fim.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

S

I

Maldita letra torta
Costurada no septo
Que me enroscava o ar

Consoante teimosa
Reflexo do caminho
Que eu seguia só

Tuas perigosas curvas
Entornavam os devaneios
Para ver-me derrapar

Princípio da solitude
Que se dobrava no passo
Para findar o mas
Dito sem nem compostura

II

Bendita letra torta
Presente nas palavras
Que escolhi a dedo
Para viver minha paz

Estava na poesia
E nos nomes das meninas
Prá quem guardei amor

Estampada no meio da asa
Do anjo que me velava
E que me fazia voar





sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Retornos II

Onda em mim.
Guardei teu movimento
Na memória da pele e
Na entranha do ventre.
Prazer em ser casa
De tua doce dança.
O que lembro de ti
É o encanto suave
De um bailar submerso
E da força tenaz
De revirar-se no dentro.
Meu relicário,
Quente e maternal,
Ainda lateja tua falta.
Ah, se eu pudesse escalar
O cordão que me liga ao céu
Para sentir você outra vez...

terça-feira, 23 de julho de 2013

Sonetos Imprevisíveis

I

De traço delicado
E alvura sem igual;
O corpo desenhado:
Era a face de um dragão.

Abria, envergonhado,
Ao menor sinal
De um som tilintado:
Era o fim da solidão.

Esperava noite e dia
Guardando o melhor doce
Em que ela se banharia...

Ah, como queria
Que quando ela fosse,
Desse certeza que voltaria!

II

De porte importado
E chapéu de sisal;
O dorso tatuado:
Era um nome escrito à mão.

Sorria, encabulado,
Ao menor sinal
De um brilho prateado:
Findava sua escuridão.

Mas, nervoso, ele via
Ela dançando noutra mão!
E assim tudo acabaria...

Revoltado de paixão,
Lá do alto pularia
Para espatifar-se ao chão.

III

Todo o doce desse amor,
Derramado sem pudor.
"O açucareiro e a colher"

sábado, 20 de julho de 2013

Sem e Com Você

I

Deitar sem descanso
Dormir com remédios
Vestir-se sem apreço
Passear com culpa
Pensar sem silêncio
Remoer com hipóteses
Acordar sem vontade
Abraçar com medo
Seguir sem rumo
Caminhar com tropeço
Passar sem lembrar
Cansar com calendário
Recostar sem sossego
Rever com terapia
Chorar sem plateía
Sangrar com demora
Perguntar sem respostas
Rasgar-se com raiva
Levantar sem prumo
Viver com saudade
Relembrar sem paz
Sentir com alma
Gritar sem som
Amar com vísceras

II

Sofrer sem tempo
Pedir com fé
Sedimentar sem dor
Curar com paciência
Planejar sem pressa
Eternizar com carinho

III

Tua vida na minha
Com começo e sem fim


quinta-feira, 18 de julho de 2013

Mão

Mão que afaga e tece
Que trama um cordão de contas
Mão que esmaga e escreve
Que caleja dos dedos as pontas
Mão que acena e segura
Que estapeia, torce e empunha
Mão que apoia e esfrega
Que treme, acarinha e se entrega
Mão que constrói e suplanta
Que destrói, aponta e nega
Mão de amor e de cura santa
Que planta, aduba e rega

Queria a mão, assim bem gigante!
E que ela pudesse reter o tempo
Em que se ama e se á amado.

Ao Deitar

O silêncio não está.
Bato à porta, o procuro...
Em vão.
São tantos os ruídos:
Infinito sonoro do pensar.
Nem na mata,
Lá no céu,
No fundo do oceano
Ou na embalagem hermeticamente fechada do café.
Sim, ele se foi.
E eu o quero para mim.
Um minuto sem som,
Um tempo só vazio.
Então seria bom.
Eu poderia ouvir a menina calada de mim,
Aquela que dorme e que eu amo.
Mas o silêncio não está.

Todo o Amor

Sol
Céu
Mar
Som
Rio
Ar
Fogo
Terra
Flor
Chuva
Mato
Cor
Pedra
Planta
Bicho
Cheiro
Nuvem
Estrela
Você

Tudo foi o amor que fez.

domingo, 14 de julho de 2013

Frida

Figurava em meio a multidão
Tua presença ímpar de calor,
Olhos brilhantes e sem razão
Emoldurados por dias de dor.

O teu corpo, belo e fiel registro
Das tentativas de consertar-se,
Exalava paz e horror, um misto,
Tuas verdades, sem disfarce.

Como nunca, entintava a tela
E fazia do caminho sua beleza.
Picada em mil pedaços vinha ela:
Frida envolta em própria riqueza.

Tuas cores, cheiro e pelos,
Era graça atemporal e doentia.
Ah! teu pincel... queria sê-lo
Para pintar o amor que me valeria.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

A Questão

Cafezinho de coador
Uma dúzia de moedas
Carinho de mãe
Um dia na praia
Uma mordida num bombocado
A vida do teu filho
Calcinha combinando com sutiã
Um gole de vodka
Histórias de assombração
Ir à festa sem ser convidado
Gol do seu time aos 45
Lençol de algodão egípcio
A pipa no céu
Muito dinheiro no banco
Livro novo e quase esgotado
Um par de sapatos Prada
Fotografia da família reunida
O carro do ano
Casamento feliz
Um emprego bem remunerado
Orgasmos múltiplos
Um banho morno no fim do dia
Pai Nosso na cama
Um filme B no cinema
Seu poodle abanando o rabo
Bandeirinhas de festa junina
Músicas de Beethoven
Um passeio de bicicleta
Álbum de figurinhas completado
O Papa
Uma cantada na rua
Colesterol baixo
Barzinho com os amigos
Um beijo roubado
Massagem nos pés logo cedo
Docinhos de festa
Gostar do próprio corpo
Cachoeira nas costas
Biscoitos amanteigados
Cheiro de roupa nova
Sombra de árvore
Vinho branco na taça correta
Bolsa sem buraco negro
Blusa quente em dia gelado
Uma oração para Oxalá
Orquídea em flor
Garoa fina na madrugada paulista
A palavra certa para a poesia
Um telefonema tão esperado
A Xuxa
A aspereza do sertão
Uma unha desencravada
Um Degas aquarelado
A gostosa da revista
Carta de gente bem distante
Escolher o nome do bebê que vem
Viajar de mochila e chinelo
Um cachorro quente prensado
Elogio do chefe
Amassos no elevador
Brincar com os sobrinhos
Sair transformada do cabeleireiro
As ruas sem trânsito no feriado
Promoção leve 3 pague 2
Encontro romântico
Passarinhos cantando de manhã
Sumir de caso pensado

Então, o que te faz feliz?

Monstro

Envolto em couro de dromedário,
Dois dedos nos pés, como o avestruz.
No peito batia um coração solitário,
Feito de glacê e coberto de alcaçuz.

Por fora, o corpo medonho e nojento...
Dono de um talho na fronte ovalada,
Deixava escorrer um azul sangrento
Que formava a poça onde descansava.

Mas por dentro, o monstro se desfazia
De tanta carência e falta de amor.
Desinformado, ele próprio nem sabia,
De sua beleza escondida no horror.

Todo tempo, imerso em feiúra e maldade,
Havia esquecido o menino que era...
Olhos desconfiados, em qualquer parte
De seu dorso roxo e enrugado de fera,

Fitavam, atônitos, nos outros o medo:
vastos espelhos do seu negado eu.
E comia-lhes até a ponta dos dedos
Para que não lhe tomassem o que era seu.

A noite a lua minguava e o mundo dormia
Enquanto o grotesco, coitado, chorava...
De pesadelos, lembranças e esquizofrenia;
De remorso, pavor, tristeza e dor calada.

Debaixo do céu, ele reinava soberano,
Sentado em seu trono de chifres de boi;
Mas ninguém sabia do seu único plano:
Proteger a memória de quem realmente foi.

terça-feira, 9 de julho de 2013

Rua

Ajuntados, sozinhos, perambulando
Uns moços, outros velhos, desejando
Gestos, beijos, goles e acenos...
Urge o tempo de sorrir para a rua!
Saias, cuturnos, olhares obscenos
Tudo convive sob a mesma lua.
A noite é curta para tanto querer.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Do Amor

I

Era bem querer
E querer demais
Não o querer qualquer
Nem um querer jamais
E no bem-me-quer
De querer meu bem
Meu bem quis também
Todo o bem da paz
E juntos queridos
Amamos bem e mais

II

Quero-quero na janela
Manhã de sol
O meu bem é ela
Sol da manhã
E eu querendo mais...

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Urgente

I

Vem!
Repara e ouve isso tudo.
É a urgência de viver:
Minutos felizes
No para sempre do agora.

II

Não perca a lágrima,
O grito,
O giro da saia,
O beijo na boca,
O vento no rosto,
O cheiro do mato,
O quente do banho,
O gosto da fome saciada...

III

Vem ver o abrir da asa
Da linda borboleta
Ao sair do casulo.
A flor de laranjeira,
Que de ontem para hoje
Tocou de um branco puro
O verde do teu jardim.

Repara o doce sorriso
Primeiro do bebê
Ao ver o rosto da mãe.
A mão do molequinho
Que toca, em timidez,
A palma da menina
A qual quer tanto bem.

Ouve o canto da senhora,
Varrendo o quintal,
Ao sol dessa manhã.
O som da mordida
Em delicioso biscoito,
Crocante e salgado
Em seu desjejum.

Tem tanta coisa para viver...
Acorde leve para a luz do dia!


Peso

Sacolas de roupas velhas
Doadas para gente estranha.
Cartas e postais e bilhetes
Queimam, sós, na lareira.
O relógio engavetado
Na penteadeira do quarto.
Os cartões bancários
Cortados ao meio.
As bolsas aposentadas
- em armários velhos -
Não gritam obscenidades.
Poemas pela metade
Rasgados em pedacinhos.
Anotações e cadernetas
Dormem no lixo reciclável.
Retratos voltados à parede
Fitam, perplexos, o látex
E nem olham mais para ela.
Números telefônicos
Apagados e sem destino.
Livros e lembranças
Encaixotados num porão.
As xícaras pintadas à mão
Foram para a casa da tia.
O carro? Vendido.
A casa? Leiloada.
Agora, mais leve.

Pássaros

Os periquitos domesticados possuem as asas cortadas, mas também já não há ventania boa que faça a gaivota planar. O que os une é o canto.

Fardo

E numa fração de segundo,
O corpo pesa o tanto do mundo.
O pensamento, o peito, os poros,
Tudo em mim carrega você.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Filhinha

À essa réstia de sol,
Que adentrou meu caminho
Deixando rastro de luz e cinza,
Toda a minha gratidão e prece.

Nely

Tal qual malha tricotada,
Em lã vermelha e cardada,
Nas mãos de vovozinha paciente,
Era o aconchego de seu colo.

Amiga que cruzou minha estrada,
Montou barraca e fez morada,
Plantou com amor uma semente
E ainda adubou meu solo.

Ficou, sem nem pedir licença,
Desatou o nó da desavença
Que havia entre eu e o mistério
De tudo o que eu não sei no pensamento,
Só no sentir do coração.

Tuas palavras de mãe que ensina,
Doces verdades sem rima,
Por vezes cheias de um ar tão sério,
São, para mim, a força de um vento
Ou o amor presente numa oração.

E caminhando ao seu lado,
Descobri cores, coisas, cacos,
Flores, felicidades, fé.

terça-feira, 25 de junho de 2013

Escolha

Um mar de interrogações
Onde boiava o pensamento.
Se razão, se emoções...
Seguiria por qual vento?
O interior revirando só:
Vai-e-vem descompassado.
E no estômago, um nó,
Esperando ser desatado.
Tanta dúvida ajuntada
Era mesmo para inquietar.
O corpo gemia e chorava...
E elas ainda estavam lá.
As perguntas perguntativas,
De rasgar um'alma em mil!
Emaranhado de subjetivas:
Tantas palavras em rodopio.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Resistência

Ainda que feita de puro sisal,
Em trama flexível mas forte no cerne,
De tão puxada - com força abusiva,
Esgarçou-se demoradamente e sem alarde,
Até que num dia de balanço qualquer,
A corda jovial de sua resistência,
Estourou de uma só vez.
E partida ao meio,
Já não havia nó, cola ou fogo que a recompusesse.

Nuvem

Ao longe, migrava,
Era toda algodão...
E o vento a ventava,
Fluir na imensidão.
Talvez cama de anjo,
Pula-pula de alma.

De perto, dispersava,
Era só poluição...
E o vento a ventava,
Fumaça na escuridão.
Nuvem confirma o jargão:
Nem tudo é o que parece.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Divino ao Redor

Verde, vivo,
Cheiro do mato.
Mudas, ramos,
Grama molhada.
Fresco, água,
Os pés afundados.
Galhos, folhas,
Terra adubada.

Beijinhos, margaridas,
Espadas e pimentas.
Dedinhos, orquídeas,
Flores e suculentas.

Plantas para o coração.
Caminhos para a paz.
O divino ao redor.

Maldade - II

Sentada à mesa,
Cotovelos apoiados,
A saliva escorre
Pelo canto da boca.
Silenciosamente e
Demoradamente,
Aprecia as iguarias e
Rói até o osso.
É disso que come
E se satisfaz e
Conta aos chegados
Como fosse vantagem.
Fartura de maldade
Agrada seu paladar.

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Tempo do Luto

Ver morrer um filho é ganhar um nó na garganta, que deseja desatar em gritos pela duração da eternidade. Engasgar e permanecer perplexo, pairando sobre a própria existência, anestesiado até as entranhas. Aguar-se às escondidas para não incomodar felicidades alheias. Tocar, sem demora, os outros tantos que ama, para não despertar-lhes aquela caridade piedosa; ou pior, por terror instantâneo de apegar-se ainda mais, a todos que vão. E ver tudo seguir, pela fresta da janela poeirenta daquele cômodo, em que se instalou temporariamente, apenas para se proteger dela: a vida.
- Pára o mundo que eu quero descer!
Longo mergulho, sem respiro, toneladas amarradas ao corpo rumo ao escuro, vazio, sem som, da solidão. Quando, então, os pés tocam o fundo viscoso desse poço quase sem fim, só poderá ser deles a força e o impulso para retornar à superfície; subir à tona para observar, cuidadosamente, a nova vista. E enfim apreciá-la, sem a pena da memória, só com o sabor da saudade.

terça-feira, 28 de maio de 2013

Da Indiferença

Rabo de olhar.
Manhã sem bom dia.
Despedida sem beijo.
Palavras que vagam:
Sozinhas, monólogas.
Solilóquios coitados.
Presença sem alma.
O toque extirpado.
As costas, a nuca:
Imagens do que restou.
Chamada em espera.
E-mails nos spam.
Sombra que percorre
Cômodos sem calor.
Um bom sapateado
Na dignidade alheia.
Está posta a mesa
Para um só comer.
Os talheres escondidos
No pano recalcado
Da velha indiferença.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Canto para Oxum

Eu vi mamãe Oxum chorando a morte
Do filho consagrado ao Pai do céu.
Em volta dela era um rio de pranto
Feito de puro amor com gosto de mel.

Luzia o ouro do teu ventre aberto,
Imerso n'água calma e infinita...
E coroada de lírios da mata
Era a mulher mais só e também a mais bonita.

Sua dor corria ao longe, pro oceano:
Espelho do céu, nossa Aruanda.
Oxum, doce mamãe que tanto amo,
O teu brilho vivifica e meu coração encanta.

sábado, 11 de maio de 2013

Para sempre Mãe

I

Um sorriso largo
Estampa meu rosto,
Na volta para casa,
Porque você me espera.
Pode ser sol, chuva
Ou um dia tedioso:
Eu recebo teus beijos,
Carinho e abraço,
Afago e calor no colo.
Para sempre filha,
Isadora.

II

Uma paz mansa
Inundará minh'alma,
Na volta para Casa,
Porque você me espera.
Já não haverá vento,
Sombra ou nebulosa:
Eu receberei teus beijos,
Carinho e abraço,
Afago e calor no colo.
Para sempre filha,
Heloísa.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Aquela

Eu sou uma daquelas que atrapalhou a sua volta para casa hoje. Atrasei você, aumentei o congestionamento da cidade e te irritei com meus brados. Eu sirvo para educar os filhos da cidade, mas não sirvo para receber aumento, valorização e condições dignas de trabalho. 
Você deseja que eu esteja no meu lugar, fazendo o meu trabalho, educando os filhos da classe trabalhadora. Mas não apóia que eu reivindique que esse lugar de trabalho seja decente, xinga a minha manifestação, lá do alto do prédio e da sua condição social, e cospe lá de cima na nossa cara.
Eu sou uma daquelas que tem a mão seca de pó de giz, com calos de tanto escrever, mas cheia de carinho para dar, de afagos para as cabeças das crianças. Mas você quer a minha mão na lousa e não na bandeira. Você a quer na caneta azul atribuindo notas aos alunos, e não na mão de outro companheiro, que está nessa corrente comigo.
Eu sou uma daquelas que poucos almejam ser. Será que vou virar raridade? Mas você só está onde está porque teve alguém como eu ao seu lado, segurando sua mão, te ensinando a usar o lápis, te incentivando a ler, a usar bem o corpo, a gostar da beleza, a respeitar o amigo e as coisas dele...
Eu sou uma daquelas que sai de casa bem arrumada e volta descabelada. Que come marmita, merenda, em quinze minutos, para atender um pai desnorteado, uma mãe preocupada...
E faço o papel de mãe, pai, amiga, psicóloga, assistente social... mesmo sabendo que não é meu papel e que isso me desvaloriza. Porque a situação é tão precária, que não me sobra coragem para ignorar o outro e sua demanda urgente de ser gente e ser respeitado e atendido.
Eu sou uma daquelas que planeja a aula, o projeto, o dinheiro no final do mês. Que leva para casa os desaforos, as provas para corrigir, o desrespeito... e fica fazendo terapia depois para entender o que está acontecendo.
Está acontecendo e todo mundo vê, mas ninguém quer se comprometer. Está acontecendo e já faz tempo. Faz tanto tempo que já se perdeu a conta de quantas vezes lutamos, de quantos são os analfabetos funcionais no país...
Eu sou uma daquelas que mal dorme, que mal descansa, que tem pouca saúde e um montão de problemas.
Aquela que perdeu a mãe ou o pai ou o marido ou o filho, aquele que anda de ônibus lotado ou que está com o carro batido mas não tem dinheiro para consertar, aquela que sai cedinho e volta bem tarde e ainda tem que cuidar da casa, da família, do cachorro adotado e das provas e das mensagens dos alunos no facebook, aquela que está de licença, doente e cansada... Eu sou aquela, como você, com uma história.
Nessa história, sou aquela Professora, com muito orgulho, de greve, justamente porque sou EU a professora.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

João e Maria - parte III

Opostos cruzando a avenida,
Cegos com olhares profundos,
Num segundo estavam ao chão.
Lanternas, medo, grito, colisão
E os desejos quase moribundos.

Tudo a volta ficou desrimado.
Estatelados e um tanto distantes,
Buscavam, no asfalto, um encontro:
Fosse mágico como um poema
E sincero como o branco da rosa.

Em leves movimentos dos dedos,
Procuravam-se, pois, um ao outro...
Sabiam-se dois desde sempre.
Esqueceram do trem e do terno
Porque, enfim, o tempo parou.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

João e Maria - parte II

Cachos, fitas, laços de cetim,
Vestido apertado confinando o ar.
Tanta vida nesses sapatinhos
Presos ao quarto cheio de ursinhos...
E se o tempo pudesse voar?

Na boca, aquele mesmo sim
Quando o coração só quer negar.
Está cheia de tanto carinho,
Quer o vento, o não e o espinho,
O prazer de poder experimentar.

Em goles bebeu suas luas,
Loucuras preencheram seus dias.
Eram músicas, tatuagens e cores
Que fingiam esconder suas dores,
De um tempo que nunca sumia.

Diversão garantida numa mão (ou duas)
Ovelha loira desgarrada das tias.
Noitadas, mas poucos amores.
Rotina de beijos sem flores...
Para onde será que iria?

Sozinha vagando num cinza sem fim,
Plano definido: morrer na estação
E deixar o vazio na frente do trem.
Quando então se desvela um quem:
Para quem nunca olhou, um tal de João.

terça-feira, 30 de abril de 2013

João e Maria

Solas gastas no vermelho da terra,
Sonhos pairando no cheiro do ar.
Bolas de gude e goles de tubaína,
Pique-esconde só até a esquina...
E se o tempo pudesse parar?

No peito, a voz rouca que berra:
Pelo instante, o doce e o mar.
Quer o riso fugas da menina,
Toda a paixão e adrenalina...
E se o tempo, enfim, esgotar?

Então os livros comeram as luas
E os amigos saciaram os dias.
Aquele tempo, sempre tão veloz,
Era mísero, seu fiel algoz,
Que os desejos secretos consumia.

Trabalho regrou uma mão ou duas.
Engravatado e bonito para as tias.
Restou, nesse mundo feroz,
Lamentar o tempo - animal atroz,
E a vida que aos sete (e dezessete) queria.

Quando o céu cinzento de agosto,
Iluminado de fogos de artifício,
Segurou sua mão diante do precipício:
Vinha leve, sozinha, vestia poesia...
Era sua, menina, era ela, Maria.

(para Rafael Lucas completar quando quiser) 

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Quimeras

O olhar.
Pesquisa da alma.
Queria a alma lhe atravessando.

O toque.
Interesse das mãos.
Queria as mãos nos cabelos.

O abraço.
Vontade do peito.
Queria o peito colado no seu.

O carinho.
Escape do amor.
Queria o amor tirando seu ar.

O sorriso.
Florir dos lábios.
Queria os lábios de lua crescente.

O beijo.
Desejo da boca.
Queria a boca no deserto das costas.


sábado, 20 de abril de 2013

Senhora

Aquieta.
Carrego o peso dos teus braços vazios
E lavo os teus pés com lágrimas de amor,
Para sentir-se acolhido em teu caminho,
Como num ventre, concha ou ninho
- filho meu.

Adormece.
Cubro com meu manto azul e sagrado
O teu corpo doído e um tanto machucado,
E conduzo pela mão tua alma renascida
Até onde ela possa, enfim, repousar
- nosso céu.

Acorda.
Derramo felicidade gratuita em teu dia,
Dádivas de sol, chuva, vento e terra macia,
Na vontade de ver-te sorrindo outra vez
Em sua busca pelo que está guardado
- e é só seu.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

De volta

Seus pés velhos e caminhantes, de unhas compridas e um tanto lascadas, afundavam nas areias quentes e finas de seu deserto. Estava cansada de suas receitas mágicas para plantar maldades. Toda vida carregara aquelas vestes que se arrastavam junto a seu corpo - retalhos costurados a mão, um a um, de todos os tons de negro do espaço. E os cabelos ralos, longos, branqueados na fronte, desgrenhados feito um capim mordido, aqueciam seu colo vazio de amor. Que falta fazia um bom fogo naquelas gélidas noites, em que ventava poeira em seus olhos. O dedo, de tanto apontar os outros, fora tomado por uma artrose sem fim, que consumia suas raras intenções de carinho em seu urubu de estimação. E a cada estação, na eternidade de sua alma, crescia uma solidão também sem fim. Suplicando à vida, ao menos uma porção de afeto e um esboço de sorriso, comeu da terra, bebeu da chuva e ardeu seus olhos ao sol farto da manhã. Sem resposta, cavou um buraco bem profundo com o pouco de energia que lhe restava. Enterrou-se de pé, até o pescoço, apenas com sua razão descoberta, para ver se brotava como um cacto. Enraizou-se, sentiu-se acolhida. E finalmente, ao seguir de tantas luas, não vingou e cumpriu a bruxa que lhe fora emprestada.

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Autorretrato

I

Que traço, maneio, imagem que sou?
Qual forma, perfil, do rosto, restou?
Escolho uma veste e um humor para o dia
Que não é, finge ser, o que de fato eu seria.


II

O que vive em mim,
Perturba, revira e lateja,
Pois não mostro assim
Pr'um passante que lampeja.

Escondo, tenho medo,
Quero sumir da vista
E da ponta do dedo
Que me julga e revista.


III

Meu dentro verdadeiro
Por vezes emporcalhado,
Noutras, tanto derradeiro
De amores consumados.

Meu secreto que guardo,
Fino, leve e frágil cristal,
Cálice de todo o sagrado,
Montanha de bem e mal.

E se não agrado
Com meu deserto de sal?


IV

Anjo e monstro convivem
Em meio à minha ferrugem.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Rimas prá Depois

Éramos sós.
Amores livres.
Desejos grandes.
Planos demais.
Respiros rápidos.
Setas disparadas
Por ruas incertas.
Alvos comuns?

Éramos dois.
Apenas nós.
Sonhos de cores.
Mundos diversos.
Caminhos novos
A passos largos.
Promessas, beijos,
Flores e mentiras.

Éramos três.
Unidos mais.
Tempos de menos.
Os pés atados.
Vezes de dores.
Dias de risos.
Talvez mais presos
Nuns anos felizes.

Éramos quatro.
Esperanças finitas.
Em poucos minutos,
Longos e intensos,
Voltamos sem paz.
Imensos vazios.
Desertos sem sóis.
Lágrimas a mais.

Éramos sós.
Juntos separados.
Explosões contidas.
Tapas e palavras
Carinhosas, malditas.
Semanas de caos.
Estávamos restos
Cheios de nós.

Ainda éramos nós:
Carregando-nos os três
E as rimas prá depois.

sexta-feira, 29 de março de 2013

Indo

Unhas cresceram.
Chuvas chegaram.
Depois as folhas.
Filhote espichou.
Trabalho acumulou.
Depois a louça.

Somou cada dia.
Passou, passou...
Viu os minutos
Correndo vazios
Pelas frestas.
O que restou?

A sensação de tudo estar por um fio que balança rápido demais.

Banho

Demorada e gorda é a água morna em que se afundam os pés.
Num quente sem fim, vai tomando as migalhas tenras do que restou... até que seu cheiro filtrado perspasse as narinas, gélidas, boiando no fora desse esperado encontro.
Imersa nesse mundo suspenso e sem som, esquece do tempo que corre.
Em meio as texturas camurçadas do óleo de amêndoas, repara nas cicatrizes não bem-vindas.
Fica.
Quando o toque da brisa, que atravessa o vitrô, acaricia o ombro - que de tarde foi consolo, numa só reta diagonal, levanta com insistência a carne que a leva pelos dias vazios.
Deixa para trás tão doce abrigo, para abraçar devagar o corpo em meio ao pano.
Espicha-se toda, os poros atentos e segue rumo a mais viagens do anoitecer.

quarta-feira, 20 de março de 2013

Oração

Eu te chamo na palma da mão
Para cuidar do meu coração -
Que é teu e não sabe do bem,
Da luz e da guarida que vem
De teu manto sagrado de mãe.

Coroa minha fronte de estrelas
Mais brilhantes, intensas e belas
Suporta minha dor em teu braço
E acolhe minh'alma num laço
Do colo quente e eterno de mãe.

No cheiro da água de alfazema
O meu corpo é doce poema -
Instrumento de fé e caridade,
Para o amor de tua divindade,
Gota d'água, Oxum, minha mãe.

129.600 minutos

I

Desbota,
Dia após dia,
A única imagem
Guardada de ti.
Desejo atordoado
De eternizar
Teu rosto
Morto.

II

O pouco de você,
Que me foi concedido,
Ainda dói.
Com alegria,
Lembraria para sempre
Do que não vivi
Ao teu lado.
Em dias cinzas,
Penso que não serei feliz
Sem esse pedaço.

III

Tem areia morna
Sob os meus pés
Que afundam sós,
Na vã tentativa
De seguir à procura.
O que há em mim
É o mesmo que move
Outros animais.
Por agora, sobrevivo.

terça-feira, 5 de março de 2013

Oxum

I

Faz da minha vida, riacho,
Água corrente do bem...
Deitada em teu colo, relaxo
E durmo a paz de quem tem

Proteção e cor de mãe divina,
Teu escuro, no espelho, refletido.
Vem para aliviar minha sina
E ouvir, com amor, meu pedido:

Esvair a tristeza do inverno
Que secou minh'alma sem rumo,
Aguada de choro sempiterno.

De rosas brancas perfumo
Meu corpo cansado e materno,
Por agora assim fora do prumo.


II

De chama um toquinho crepita
Para iluminar teus domínios.
Teu brilho parece pirita
Mas de ouro são os teus desígnios.

Consolo do vazio do ventre,
Oração de beleza, clamor.
És minha senhora de sempre:
No medo, no riso e na dor.

Oxum, olho da cachoeira,
Leva embora contigo o meu pranto,
No embalo do atabaque e do canto.

Minha guardiã e padroeira,
Aparecida do Mar, canoeira,
Me envolve no azul do teu manto.

domingo, 3 de março de 2013

Ira

I

Dorme no fígado,
Em sono vertical,
A massa calcificada
De palavras quietas,
Inauditas e engasgadas,
De raiva e torpor.
Aprisionadas no lobo,
Às vezes sussurram
Desejos e obscenidades,
Por tempo demais
Contidas nessa cirrose.

II

O fio da faca.
O tapa na cara.
O grito demente.
A unha na carne.
Tudo repousa e bóia
No amarelado fétido
Da bile que carrego.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Resiliência

Ah, estrela da manhã
- estampa do anil,
luze e canta solitária
enquanto alinhavo,
de novo, sem pressa,
uns retalhos desfiados
do pouco do dentro
que restou de mim.

Pranto e contemplação
diante da colcha,
amarrotada e velha,
que persiste em ser
a casa das memórias
- panos de resiliência
e linhas de costurar,
juntos tecem viver.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Papel

O pulsar da palavra
No cheiro, textura,
Nessa gramatura
Do canson que lavra.

Retém o escrito,
Aconchego da letra;
De página tetra
Feito um monolito.

Vivifica memórias
E guarda, amarelado,
O que nos é sagrado
Entre tantas histórias.

Estampado, no plano,
Signos, fonemas...
Que tornado poema:
Explode gas metano.

Universo do papel,
Casa da quimera,
Válvula da espera
E do poeta, o céu.




quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Minha

Teu doce riso tem aquela beleza
do bater de asas de um beija-flor:
ele escapa do instante passageiro
que eu desejo, com amor, eternizar.

Teu brando colo tem aquele afago
da trama tecida em lã de cachecol:
ele envolve, quente, minha nuca
e eu almejo, com ternura, só ficar.

Medo

Vem o polvo do medo
- tentáculos espalhados,
que edifica em segredo
casas, muros, telhados.

De um bailar sedutor
que nos detém a mão,
paralisa, em torpor,
intentos do coração.

Tinta negra esparrama,
fétida cor que anoitece
o claro fulgor da chama.

O polvo insistente tece,
faz sua morada na cama
sob o jugo da prece.